Salvador Dalí chegou a dizer “sou um mau pintor porque sou demasiado inteligente para ser um bom pintor. Para se ser um bom pintor há que ser um pouco burro”.
Não tem nada a ver uma coisa com a outra. A criatividade é talvez uma fuga àquilo que é o constrangimento da cultura. Ser criativo é fugir um pouco às normas que estão estabelecidas, ter uma maior liberdade. E do meu ponto de vista, isso não tem a ver com ter muita ou pouca inteligência. São duas coisas distintas.
Não há portanto nenhuma relação entre o que quociente de inteligência e a capacidade criativa.
Não, não há nenhuma. Aliás o quociente de inteligência é um conceito “sem cérebro”. É criado no século passado muito antes de se estar a discutir o cérebro. Portanto, está relacionado com a psicologia. Foi o David Wechsler que propôs uma extensa bateria de provas nos domínios das competências ditas cognitivas, que aplicou a uma amostragem muito grande de pessoas. Viu o que era redundante e reduziu tudo a um núcleo com duas partes. Uma parte que se chamava verbal (com linguagem) e outra que era não-verbal (sem linguagem). E assim obteve um valor numérico que designou por quociente de inteligência. Colocou matemática em cima daquilo. Depois as pessoas acreditaram que aquilo era como uma análise de sangue, ou o ADN. Mas hoje em dia sabemos que o QI varia com a cultura – entre outras coisas – e portanto nada é fixo. Felizmente nada é fixo na cabeça das pessoas. Podemos estar constantemente a moldar o conhecimento. Agora, o que é a criatividade? A criatividade é ser capaz de sair dos modelos estabelecidos e de ter alguma liberdade dentro da cabeça de forma a ter acesso a outras áreas de exploração do mundo que não são as habituais. A criatividade vai reduzindo com a idade. À medida que vamos adquirindo mais conhecimentos vamos ficando cada vez mais restritivos na nossa forma de pensar (se não formos cuidadosos a gerir a nossa cabeça). E portanto vamos sempre arranjando soluções dentro das soluções que fomos aprendendo e que nos parecem as mais consensuais. Há pessoas que conseguem estar sempre com a “porta entreaberta” e de fugir para outras áreas. Quando é que podemos dizer que a produção das pessoas é interessante? Quando – apesar de tudo – reconhecermos dentro de nós que aquilo que está feito nos diz alguma coisa. Embora tenhamos medo de o ter dito, gostamos que os outros tenham dito. E esse é que é o resultado da produção artística. É evidente que para alguma da produção é também preciso ter algum conhecimento e ter um enquadramento cultural para fazer a leitura conveniente. É preciso que se tenha capacidade para se fazer a descodificação. Por exemplo, há coisas que não são intuitivamente belas. Que só são belas quando sabemos como é que as podemos ver belas.
Há um discurso em relação ao objecto.
Há um discurso prévio que nos diz “Sim senhor, pronto, já percebi”. Mas podemos chegar à beleza intuitiva e essa é mais espontânea, é uma beleza que nós apreciamos mais intuitivamente. É o que me parece quer em relação à música, quer em relação à pintura, à escultura. É evidente que quando se discute arquitectura… eu lembro-me de ter tido uma longa conversa com um arquitecto que mencionou esse constrangimento: quando ele dava aulas dizia aos alunos “vamos discutir aqui um sítio onde as pessoas vão tratar dos alimentos” e se dissesse “cozinha” os alunos começavam todos a fazer cozinhas. Portanto ele tinha que retirar o constrangimento natural. Depois ele perguntava-me “Como é que eu ensino a um aluno como é que se faz uma janela? Qual é a dimensão da janela?” E eu acho que a arquitectura tem alguns aspectos muito interessantes, um deles – e que é fantástico – é que não é preciso algo estar construído para nos emocionarmos. No entanto, a arquitectura também tem que se ligar às pessoas e portanto implica que o arquitecto seja capaz de fazer a leitura de como as pessoas funcionam dentro dos espaços, que nem sempre é fácil porque a leitura do espaço dessas pessoas pode não ser a nossa e por isso podem sentir-se mal lá dentro.
Há quem diga que a criatividade é a capacidade de conectar com sucesso conceitos aparentemente não relacionáveis. Nesse sentido, gostaria de perguntar se uma boa memória se torna vantajosa a um criativo? À partida, a possibilidade de armazenar um maior número de conceitos de forma a serem manipulados e transformados numa nova ideia é uma ferramenta importante para a criatividade.
O que é que é fazer associações? Fazer associações é trazer para o nível consciente uma série de elementos – guardados em memória – que depois nós articulamos. E um criativo encontra forma de o fazer mesmo quando não é óbvio. É evidente que a memória é indispensável. Ou melhor, as várias memórias. Porque isso implica ter uma memória semântica – que vai buscar os elementos básicos do passado que fazem parte da nossa experiência – e depois uma memória de trabalho que permite manter as coisas num nível operacional – que é a memória “RAM” dos computadores – de forma a não perder nada durante os processos. E depois articular isto tudo de uma forma que não seja habitual que é o que fazemos no sono. No sonho nós não temos nenhum sistema de controlo, o sonho é completamente criativo e livre. Não significa que tenha significado. Não tem, não se deve atribuir significado. Mas a liberdade de associação é completa.
Há a tendência de se compartimentar o Conhecimento. Desde há muito tempo que há uma separação entre as Ciências e as Artes. Crê que, tendo em conta a criatividade, as Ciências e as Artes estão mais próximas do que se julga?
Eu gostava de pensar que estamos a viver uma nova Renascença. Eu achava muito interessante que estivéssemos a viver uma nova Renascença – se calhar só se vai perceber daqui a uns anos quando eu já cá não estiver e se calhar também não será durante o seu tempo – em que as pessoas deixam de olhar para o mundo em compartimentos. O que aconteceu foi que nós fomos muito Aristotélicos a estudar as coisas. Começámos a fazer colecções de coisas observáveis. De vez em quando temos pessoas a falar das mesmas coisas com uma forma completamente distinta uma da outra. Ora o Universo não está dividido dessa maneira e portanto os saberes são contínuos, não existe descontinuidade. E portanto, dizer “Ciência e Arte”… quando se está a escrever um “paper” científico ou a fazer uma investigação científica tem que se ter criatividade. Muitas das vezes a criatividade resulta da pessoa olhar para as coisas e dizer “isto nunca foi escrito”, “isto não é assim, pode ser assim” ou “deixa lá experimentar”. E aqui acontece um salto positivo.
De resto essa experimentação é algo que acontece muito nas Artes também. As criações não nascem de um dia para o outro.
Exactamente. Os artistas também fazem experiências.
E crê que nas ciências também se pode falar em estética? Há físicos – por exemplo – que falam numa beleza que é também procurada quando desenvolvem fórmulas.
Eu aí tenho alguma dificuldade em perceber qual é a modalidade que estamos a falar. Eu quase que diria que é uma modalidade sequencial do que uma modalidade espacial. Temos que admitir que a modalidade dominante no tratamento da informação é importante na definição do processo. A estética da arquitectura é muito visual e espacial, enquanto que a estética da música – por exemplo – é muito sequencial, marca o tempo. Por isso, eu admito que haja formas estéticas supramodais e que a Matemática possa ser uma coisa desse género. Esta sequência dos símbolos e a forma como eles são postos no papel.
No passado, o trabalho de um arquitecto era muito autoral, isto é, apesar de “estar de pé sobre os ombros de gigantes” o trabalho era mais individual do que é hoje. O arquitecto Rem Koolhaas afirma mesmo que o que é incrível na actualidade é como é possível ser gerada uma inteligência colectiva a tal ponto intensa que é impossível identificar um único autor. A longo prazo, a forma como trabalhamos em rede poderá modificar a maneira com o nosso cérebro funciona?
Eu acho que a globalização é uma catástrofe. Penso que o mundo se desenvolve pela diferença e não pela semelhança e portanto é preciso cultivar a diferença. Admito que isso que me está a dizer resulta dos instrumentos que são usados e da velocidade que as pessoas têm de fazer as coisas. Hoje – muito provavelmente – as pessoas acham que não há tempo para fazer as coisas porque têm prazos. Eu vejo os arquitectos a participarem em concursos com um prazo cada vez mais limitado e depois vão buscar programas informáticos que naturalmente os restringe na criatividade porque querem fazer uma coisa e o computador não obedece. O programa não pode estar preparado para a novidade, ele está preparado para aquilo que já se sabe não para o que é desconhecido. Naturalmente que as soluções que vão surgindo são soluções cada vez mais estereotipadas – o que não é nada bom para a evolução da espécie. Precisamos cada vez mais que cultivar as diferenças.
Os arquitectos lidam com territórios físicos. Como dizia Peter Zumthor: “Na arquitectura retiramos um pedaço do globo terrestre e colocamo-lo numa pequena caixa”. No entanto parece haver um território que está tão próximo de nós e que é acabamos por descurar. A nossa própria mente. Sobre isto, fico sempre fascinado com as palavras de Gilles Deleuze sobre viagens.
Diz ele: “Não preciso de sair. Todas as intensidades que tenho são imóveis. As intensidades distribuem-se no espaço ou em outros sistemas que não precisam de ser espaços externos. Garanto que, quando leio um livro que acho bonito, ou quando ouço uma música que acho bonita, tenho a sensação de passar por emoções que nenhuma viagem me permitiu conhecer. Porque iria buscar estas emoções num sistema que não me convém quando posso obtê-las num sistema imóvel, como a música ou a filosofia? Há uma geo-música, há uma geo-filosofia. São países profundos. São os meus países.” Qual é a sua opinião?
Eu não estou nada de acordo com isso. Eu acho que a experiência vivida da realidade é muito mais rica que a reprodução da realidade por outro modelo qualquer. E dou-lhe alguns exemplos até de experiências pessoais – e isto que ele disse tem a ver com a experiência dele e com aquilo que ele pensa do mundo, obviamente. Eu fartei-me de ver fotografias de Petra e quando cheguei a Petra… é completamente diferente. É outra coisa que não tem nada a ver com as – boas – reportagens que tinha visto. É outra sensação. Isto faz lembrar uma outra história: eu reconstruí uma casa de família que estava completamente em ruína e os engenheiros disseram “Isto é mais fácil deitar tudo abaixo e fazer outra vez” e eu disse “Está bem. Então mas só se conseguirem colocar cá os ‘fantasmas’ outra vez” porque é outra coisa. Têm de ser as mesmas pedras. Portanto, os sítios, os lugares têm uma história que é percebida pelas pessoas, e é muito difícil fazer uma viagem sentado numa cadeira. Ainda que as possamos fazer. Quem ler o “Dom Quixote” faz uma viagem fantástica mas não é a mesma coisa que ir a Espanha e passear pelos sítios. São duas viagens distintas. Conhecer os lugares por onde andou ao vivo ou conhecê-los “dentro” do Cervantes são duas histórias diferentes. Portanto não estou muito de acordo que a reprodução possa valer o mesmo que o real. Basta dizer que uma criança se for posta na presença exclusiva de linguagem falada através de um gravador ou algo do género sem ser através de pessoas não aprende a falar. Só aprende se estiver perante pessoas. As pessoas fazem falta as coisas reais fazem falta e portanto por mais que nós as possamos representar da forma mais interessante possível, são sempre aproximações e nunca é a experiência total.
Falou no exemplo de Petra e na diferença que é ver uma imagem e estar lá, rodeado por essa imagem. No entanto, quando se está lá não é apenas a imagem, são os sons, é a temperatura, são os cheiros, a memória…
Os tais “fantasmas”.
Sim, os “fantasmas”. Acredito que também do ponto de vista neurocientífico essa diferença – entre o prazer que se tem nas duas situações – seja reflectida.
Primeiro, para que não haja ambiguidades: quando falo de “fantasmas”, falo das coisas que nós invocamos. E portanto, nós podemos invocar pessoas. São os “fantasmas” que nós colocamos lá dentro. Temos a imaginação para o fazer.
Mas olhando para o cérebro numa e noutra situação (na experiência bidimensional do sítio e na experiência multissensorial quando se está no sítio) há também zonas do cérebro mais ou menos estimuladas.
Isso de certeza. Mas é muito difícil dizer o quê exactamente. Aquilo que eu posso dizer é que há um estudo muito interessante que comparou as pessoas que tinham um “Facebook” com muitos amigos e pessoas que não tinham “Facebook” mas tinham muitos amigos. E o cérebro entre os dois grupos de pessoas é completamente diferente. O cérebro dos primeiros tem bastante desenvolvimento de áreas da memória visual, dos detalhes, etc. O outro grupo tem mais desenvolvida a área dos afectos. E portanto, de facto, essa é a diferença entre a realidade e a representação da realidade. Quando uma pessoa pensa que tem muitos amigos no “Facebook”… eu não sei se esses amigos eram capaz de dar a vida por nós enquanto que os outros se calhar são. E a grande diferença está aí: quando estou a olhar para a imagem eu posso lembrar-me de memórias que tive quando estive no sítio mas nunca é a mesma coisa que estar no sítio. Quando estou no sítio eu invoco muito mais coisas, muito mais actividades do cérebro. E se tiver que tomar alguma decisão ela é muito mais bem tomada. Eu conheci um arquitecto que é um arquitecto de hospitais no Brasil e que tem os hospitais mais fantásticos que eu tenho conhecido. Mas ele interna-se nos hospitais antes de os desenhar. Quando entramos num hospital há ali um sentido de familiaridade fantástico. Ele criou hospitais que são até quase como peças modificáveis.
Será o Lelé (João Filgueiras de Lima)?
Não me lembro do nome dele, mas é ele que tem feito todos os hospitais da rede Sarah que são hospitais fantásticos, dos mais bem construídos que eu já vi. E isto tem de facto a ver com o ser capaz de estar num ambiente e de o perceber. É preciso “respirar” dentro da criação.

Hospital Sarah Kubitschek em Brasília – João Filgueiras de Lima (Lelé) © Celso Brando e Silvio Pereira
Há actividades que temos como seres humanos que, não sendo essenciais para o desenvolvimento e transmissão genética, são muito importantes para o nosso bem-estar. A Arte é mencionada por alguns autores. É longa a discussão sobre se arquitectura se aproxima mais do campo das Artes ou das Ciências. Há quem diga que é uma arte funcional. No entanto, quando se fez a primeira cabana imagino que tenha isso possa ter sido o início para uma modificação genética evolutiva, relacionado com o sedentarismo, com as actividades agrícolas, etc. Olhando para esta ambiguidade, poderá dizer-se que a arquitectura se aproxima mais de uma actividade indispensável para o estado homeostático ou antes de uma actividade “apenas” essencial para o bem-estar social?
É uma questão complicada. O que é o desenvolvimento espontâneo de uma favela? A favela tem beleza, há coisas fantásticas. No entanto é uma coisa que é intuitiva.
É informal.
É informal, mas trás lá de dentro uma experiência, uma ideia de casa e de sítio para viver. Se calhar é das coisas mais primitivas que existe. Eu ouvi uma vez um arquitecto dizer que estes bairros da periferia de Lisboa – que eu acho que são bastante feios – são o resultado de uma construção, de uma produção humana e temos de olhar para isto numa perspectiva de “Apareceu…apareceu. Tem a sua justificação enquanto produção. Eu sei que nós temos melhores soluções, mas a verdade é que também é movimento, é expressão espontânea da construção”. Agora, o que é que entra nos genes? Tudo o que é desenvolvimento cultural entra nos genes. Nós transmitimos todas as nossas experiências – visuais, entre outras – de uma forma que não está organizada por “capítulos”. Neste momento estamos todos “às voltas” com o conceito da epigenética tentando perceber o que é. Mas a verdade é que desde há 7.000 anos que começámos a ler e as crianças estão a ler cada vez mais cedo. Isso significa que a leitura está a fazer parte integrante da nossa capacidade. Mas agora acabou-se. A escrita provavelmente vai acabar porque já deixou de ser uma escrita cursiva para passar a ser uma escrita diferente. Mas a verdade é que essas aquisições culturais entram depois dentro do nosso património genético. O que é aprender? Aprender é reconhecer coisas. E portanto, o cérebro percebe que aquilo que nos estão a dizer faz sentido cá dentro. E se faz sentido cá dentro é porque criei cá dentro uma via possível que é criada com os genes. Estamos “presos” por isso.
Já no final da década de 1980 o Deleuze dizia que acreditava muito mais “futuro da biologia molecular ou do cérebro do que no futuro da informática ou de todas as teorias da comunicação.” Concorda?
É impossível fazer futurismo mas o que tem sido sólido na presença dos humanos na Terra é a transmissão biológica. A produção científica e a produção dos equipamentos é efémera, vai desaparecendo e não se consolida numa memória – a não ser numa memória museológica. Acho muito interessante ver o que se usava nas navegações dos Portugueses na Época dos Descobrimentos mas não faz sentido hoje. Quando estou a falar de informática se calhar hoje faz sentido mas daqui a uns tempos não fará porque haverá uma outra forma qualquer. Mas o que está na memória genética passará para as gerações futuras – a não ser que a espécie desapareça como os dinossauros, o que pode acontecer também. Se me pergunta o que tem mais futuro, é o que é transmitido de pessoa para pessoa na biologia molecular.
Acha que nos relacionamos com a tecnologia de uma forma muito intensa? O iPhone para muitas pessoas passou a ser quase uma extensão da própria memória. Há muita informação que já não somos obrigados a memorizar uma vez que contamos com estes dispositivos para armazenar essa informação temporariamente. Modificará a forma como o nosso cérebro se vai desenvolver?
Apetece-me pegar nisso do ponto de vista ficcional e dizer que o que estamos a fazer é “despejar o cérebro” – o que é um risco enorme e cá vem a história da globalização. Eu acho que é dramático se deixarmos de ter informação dentro da cabeça. Nessa altura o que é que fica dentro da cabeça? O prazer, a fome, as coisas elementares. Uma das coisas que aconteceu do ponto de vista da espécie foi uma coisa chamada “Cultura”. E ela é qualquer coisa que as pessoas vão adquirindo pelo convívio de umas com as outras e com o passado e que organiza o seu próprio pensamento. É estruturante. Se eu começo a retirar todos os instrumentos culturais, se os tiro da cabeça e os espalho em apêndices eu deixo de modelar a minha cabeça culturalmente. Passo a ter uma cabeça de selvagem.